“Só voltem se forem autorizados”. Os militares foram bastante claros quando despacharam Caetano Veloso e Gilberto Gil para o exílio forçado. Quase sete meses antes, no dia 27 de dezembro de 1968, os dois haviam sido presos sem qualquer alegação plausível. Passaram por celas de diversos quartéis no Rio de Janeiro por dois meses. A licença para voltar a Salvador veio numa irônica quarta-feira de cinzas, como se houvesse algum motivo para Carnaval. Lá seriam mantidos mais 120 dias em regime de prisão domiciliar. O carimbo definitivo de persona non grata viria com o endurecimento promovido pelo Ato Institucional n° 5 (AI-5). Duas apresentações em 20 e 21 de julho de 1969 na capital baiana (o célebre Barra 69) e o tropicalismo tomava um forte golpe abaixo da linha da cintura.
O desterro causou em Caetano Veloso tanta agonia quanto vontade de valorizar aquilo que viveu na infância, que leu, ouviu e grudou na sua pele. Desenraizado, mergulhou de cabeça em um estado cinzento como a aparência de Londres na maioria do tempo. “Transa”, disco cantado em sua maior parte em inglês, consegue ser regional na mesma medida que o axé “A Luz de Tieta”, canção que faz parte da trilha sonora de um filme para lá de duvidoso de mesmo nome já nos anos 90. Aliás, o período londrino (foram dois anos e meio, entre 1969 e 1972) é mais uma reafirmação de baianidade que qualquer outra coisa.
Gravado em quatro sessões com clima que transparece espontaneidade, Caetano foi auxiliado por Tutty Moreno (bateria), Áureo de Souza (bateria), Moacir Albuquerque (baixo) e Jards Macalé (guitarra). O inglês Ralph Mace, tecladista em “The Man Who Sould the World” (1970), um dos maiores clássicos de David Bowie, assinou a produção.
“Triste Bahia”, poema de Gregório de Mattos musicado por Caetano, se estica por quase dez minutos até chegar ao ápice, com um ritmo de afoxé e capoeira acelerado, quase transpirando. “It’s a Long Way” começa lenta, contando a experiência de despertar ao som de “uma velha canção dos Beatles” para deslanchar novamente num belo samba de roda com citações de “Sôdade, Meu Bem, Sôdade”, de Zé do Norte, “Água com Areia”, de Jair Amorim e Jacobina, “Consolação”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, e “Lagoa do Abaeté”, de Dorival Caymmi. Isso sem deixar de lado a declaração de liberdade – coisa tão em falta por aqui na época – de “You Don’t Know Me”. “Transa” é isso. Minimalista no emprego dos instrumentos (nada de teclados, arranjos de cordas nem demais aparatos tão em voga na época) e intrincado no conteúdo.
Nas duas últimas décadas foi ganhando o status de “o melhor disco de Caetano” por boa parte da crítica. O público parece concordar, tanto que neste ano de comemoração o abaixo-assinado “Queremos ‘Transa’ do Caetano ao vivo” está disponível no Facebook. Até aqui, nenhum sinal do artista indica que isso vá acontecer. O músico Rômulo Fróes foi o único corajoso a tocar a obra na íntegra para o projeto Radiola Urbana 72, que relembra as pedras fundamentais da música lançadas naquele ano.
Em recente entrevista, Caetano disse ter gostado do clima sem medo e da grama verde de Londres, mas que estava “muito triste por dentro”. Tese mais que comprovada em “Transa”, o atestado de recomeço, de insistência e de não ceder às pressões. É a tentativa de dar um rumo na vida quando a saudade de casa é o maior problema que se pode encontrar pelo caminho. Há 40 anos, a solução de Caetano para bater de frente com tudo isso foi atestar: “I’m alive. Muito vivo, vivo, vivo, vivo”. Assim mesmo, meio em inglês, meio em português. Mas com um puta sotaque soteropolitano. Para ninguém ter dúvida de que ele voltaria para casa.
You Don’t Know Me
Obs. De uma pausa na música de fundo do blog na barra logo abaixo da sua tela.